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12/07/2015 às 12h20min - Atualizada em 12/07/2015 às 12h20min

AL já contabiliza 84 casos de agressões contra o público LGBT em 2015

Vítimas de preconceito contam como lidam com a intolerância sexual, religiosa no estado

Gazetaweb
Jobison Barros e Anne Caroline
"Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível, negar quando a regra é vender. É minha lei, é minha questão, virar este mundo, cravar este chão, não me importa saber se é terrível demais, quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz". Maria Bethânia já cantava esses versos ao se referir a Sônias, Agnaldos, Fabíolas, Davis e tantos outros. São estes os protagonistas de uma intolerância sem fundamento que encontram na esperança o sustento para seguir em frente. Na contramão da luta, os dados assustam: 10 pessoas mortas e 84 agredidas física ou moralmente por intolerância sexual somente neste ano.

De acordo com o dicionário Aurélio, a palavra "preconceito" possui quatro definições básicas: ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial; opinião desfavorável que não é baseada em dados objetivos; estado de abusão/cegueira moral ou superstição.

E o significado real da palavra explica a realidade enfrentada pela jornalista da Rede Globo Maria Júlia Coutinho, conhecida carinhosamente como "Maju". Ela foi alvo de comentários racistas nos últimos dias, nas redes sociais, e o caso ganhou enorme repercussão em todo o Brasil. Mas será que estamos realmente atentos ao que acontece ao nosso redor? Em Alagoas, por exemplo, casos de discriminação, de toda ordem, tornam-se cada vez mais comuns e são amplamente noticiados pelos meios de comunicação. A realidade é difícil e cruel com aqueles que são tarjados como "diferentes" por uma parte da sociedade.

A intolerância sexual é uma das mais comuns em qualquer lugar do mundo e, em Alagoas, não poderia ser diferente. Segundo o presidente do Grupo Gay de Alagoas, Nildo Correia, apenas em 2015, já foram registrados 84 casos de agressões física e moral contra o público LGBT e 10 assassinatos em todo o estado. Em Maceió, foram quatro mortes. Já no interior, foram contabilizadas seis vítimas. Os números preocupam. Em 2014, por exemplo, 104 pessoas sofreram agressões e 23 foram mortas de maneira cruel durante todo o ano. Ainda de acordo com ele, Alagoas é o 5º estado mais violento do Brasil para a comunidade LGBT em termos proporcionais.

O cabeleireiro Agnaldo Gomes, de 46 anos, mais conhecido como Kallarrari, já foi protagonista de diversas situações constrangedoras. Em um relacionamento há pouco mais de um ano com o ex-barman Gustavo Rocha, de 22 anos, ele afirma ter sido alvo de muitas atitudes preconceituosas, mas diz que não se abala por causa disso.

"O preconceito ainda existe viu? As pessoas mentem dizendo que não são preconceituosas e que respeitam todos, mas não é bem assim", afirmou. O bullying - que se refere a toda forma de atitude agressiva, verbal ou física e que tem como objetivo intimidar o outro sem ter a possibilidade de se defender - também já fez parte da rotina do profissional. E as atitudes preconceituosas afetam em igual teor o dia a dia da sua profissão.

"Eu tenho respeito com os meus clientes, principalmente com os homens. Prefiro não lavar o cabelo deles e mantenho certo distanciamento em relação a isso. Sou estritamente profissional, mas algumas pessoas ainda não entendem isso e olham 'torto', justamente porque sou homossexual", dispara.

Gustavo Rocha, namorado do cabeleireiro, conta que o relacionamento dos dois só veio a se consolidar há um ano, mas ambos já se conheciam via redes sociais. A respeito do preconceito, ele é enfático. "É muito camuflado, mas existe sim. Nós procuramos sair para lugares em que a aceitação do público é maior. Isso nos passa mais segurança", revela. Em relação à família, a situação é mais delicada. "Meus pais fingem que não sabem, mas na verdade eles compreendem toda a situação e sabem que sou gay. Entendo o lado deles, então não tocamos no assunto", fala.

A realidade também não é nada fácil para a travesti Fabíola Silva, de 43 anos. Autônoma, ela já fez cursos na área da beleza e até já trabalhou como profissional do sexo. E não se culpa por isso. Para ela, o preconceito vai ainda mais além e a prejudica até na busca pela empregabilidade e melhoria de vida. "A sociedade é ainda muito preconceituosa, sim. É muita falta de informação. No mercado de trabalho, nós ainda sofremos muita resistência e isso é uma realidade", disse. "Queremos respeito. As pessoas precisam entender que a sociedade evoluiu e nós evoluímos também", conclui.
  A superintendente de Políticas de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Alagoas, Ana Omena, acredita que o preconceito está "arrefecido" e que, dentre as minorias, os gays foram os que obtiveram um maior avanço e reconhecimento social. A realização de conferências, palestras, atos e conselhos públicos que fomentam a causa gay se tornam cada vez mais comuns e são realizados com frequência.

"O homossexualismo está mais aberto na sociedade e as pessoas falam sobre isso com mais naturalidade. Famosos, idosos e pessoas da sociedade civil organizada declaram abertamente que são gays", falou. Para ela, entretanto, ainda há muito a se conquistar. Declarações públicas de afeto entre gays e lésbicas ainda não são bem toleradas pelos heterossexuais. "Ninguém é obrigado a aceitar. Aceitação é algo de foro íntimo, mas o respeito é a base de tudo", complementa.

Em relação às demonstrações de carinho entre os casais, a superintendente explica que o ser humano possui uma tendência natural ao "impressionismo". "Até o hétero se choca quando vê o outro desviado. Você vai para a igreja com um short curto ou com um decote? Claro que não. Isso é algo bastante compreensível".
  Messias Mendonça é coordenador geral do Grupo Gay de Maceió e conselheiro do Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT. Para ele, os travestis e adolescentes gays entre 13 e 17 anos são os que mais sofrem com violência e discriminação. "Os adolescentes são mais rebeldes e atirados e acabam ficando à mercê das drogas. Muitas vezes não possuem apoio social e familiar. Já os travestis, são, em geral, menos escolarizados", explica.

Além do preconceito, outro fator também preocupa o coordenador: a falta de apoio de entidades públicas e privadas. "Às vezes, os homossexuais não denunciam porque as autoridades simplesmente não fazem nada. Precisamos de mais apoio. Para organizar uma parada gay é uma dificuldade. Temos que mendigar de gabinete em gabinete para conseguir um trio elétrico", dispara.

'Não nado mais'
A reportagem ouviu o drama enfrentado pela deficiente Sônia Gouveia. Ela é paraplégica e conquistou mais de 300 medalhas, sendo 26 delas internacionais, em campeonatos de natação e atletismo. Há 20 anos, a para-atleta já nadava na Associação dos Deficientes Físicos de Alagoas (Adefal).

Sônia conquistou um campeonato na etapa regional em Recife, venceu em Vitória (ES) e iria representar o país na Grécia. Porém, o preconceito não permitiu. "Fui convidada para treinar na piscina de um clube em Maceió, mas só fiz isso um dia. No outro dia, o presidente não abriu a porta da piscina, dizendo que eu iria contaminar os demais nadadores. Fiquei revoltada, mas não quis processá-lo porque não gosto de prejudicar ninguém. Peguei um abuso de natação e só estou no atletismo", comenta Sônia.

A atleta também foi obrigada a sair de um colégio religioso após ser vítima de preconceito. Uma freira alegou que Sônia não poderia continuar assistindo às aulas porque iria assustar as crianças. "Eu nunca percebi ninguém assustado. Eram elas mesmas que queriam me tirar dali", relata.

Outro caso ocorreu em uma igreja que ela frequentava. Sônia foi impedida de ficar em um certo espaço porque estaria atrapalhando a passagem de personagens que iriam se apresentar ao final de uma missa. "Fiquei um tempo afastada, o padre veio conversar comigo e voltei. Mas fui vítima de preconceito novamente e não frequentei mais", diz ela.

Mesmo sendo vítima de rejeição, Sônia Gouveia afirma que sempre tentou superar os obstáculos, e isso se comprova nas mais de 300 medalhas que conquistou ao longo da vida. Desde que tinha um ano e seis meses, ela vive na cadeira de rodas em decorrência de uma poliomielite, e isso não tirou dela o título de primeira medalhista do Para-Pan do Brasil, em 2007.

"Minha cabeça é muito boa para enfrentar as coisas da vida e minha família sempre me preparou para tudo. Eu venci e outras pessoas podem vencer também. Portanto, não se escondam, saiam, briguem e lutem pelos objetivos para que o sonho vire realidade, independentemente da limitação. Já os preconceituosos precisam abrir a mente e perceber que são idênticos a nós. Eles precisam tratar todos por igual".
 

Terreiros em atividade
A religião, em suas mais diversas expressões, também é pauta central de conversas e debates mundo afora. Casos de intolerância religiosa se tornam cada vez mais comuns. De acordo com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, os povos tradicionais de matriz africana se reconhecem como unidades de resistência africana no Brasil. Essas pessoas promovem a manutenção de hábitos e costumes civilizatórios africanos e fomentam a vivência comunitária, o acolhimento e a prestação de serviços sociais.

As religiões de matriz africana possuem milhares de seguidores em todo o país, mas o preconceito ainda persiste. A Umbanda, por exemplo, foi criada no Brasil e reúne elementos do Catolicismo, Kardecismo, Budismo e até mesmo do Islamismo. Já o Candomblé apresenta cânticos em línguas africanas e é voltado unicamente aos Orixás, considerados deuses e não espíritos.

Pai Célio é membro da Rede Estadual dos Religiosos da Matriz Africana em Alagoas, nasceu e se criou em um terreiro de Candomblé, tornando-se rapidamente vítima do preceito religioso. Para ele, a religião busca, principalmente, estabelecer uma ligação com um ancestral maior e promover um maior equilíbrio entre homem e Deus. Formado em História e Pedagogia, ele acredita que o preconceito surge pelo desconhecimento das pessoas em relação a outras religiões, consideradas menos tradicionais.

"As pessoas não sabem e não entendem as religiões. Como é que eu vou fazer uma avaliação daquilo que eu não conheço? Elas seguem a ideologia do achismo e do senso comum. É aquela coisa: o que o povo diz, eu acredito", diz ele.

Para diminuir a rejeição social, Célio ressalta que é preciso criar leis mais duras visando realmente combater a discriminação. "Precisamos de mais apoio da grande mídia. Nós não temos dinheiro para ficar divulgando nossos preceitos em rede nacional não. Meu terreiro é, no fundo, de um quintal, somos periferia", complementa.

Ainda de acordo com ele, apenas em Alagoas existem cerca de 5 mil terreiros em atividade. Cada terreiro possui aproximadamente 100 pessoas. Os cultos acontecem duas vezes por semana. O terreiro dele, situado no bairro da Pajuçara, também oferta atividades culturais e sociais, como capoeira para crianças e atividades de leitura e inclusão digital.
 

E a perseguição continua
A Gazetaweb também ouviu a comunidade negra, representada pelo Instituto do Negro de Alagoas (INEG/AL). De acordo com o professor Jeferson Santos, o racismo em Alagoas tem se constituído numa prática excludente constante em nosso meio. O episódio mais recente foi a demolição da Casa Religiosa de Matriz Africana de Mãe Vitória por parte da Prefeitura de Maceió, a qual se localizava na Vila dos Pescadores, no Jaraguá.

"O estado de Alagoas, em particular, tem construído uma história de perseguição e aniquilamento de sua população negra. Se nos remetermos à nossa história, veremos que, em meados do século XIX, o Estado proibiu que negros frequentassem as escolas. Como se não bastasse, foram instituídas Leis Provinciais que proibiam ainda que o negro comercializasse gêneros alimentícios pelas ruas do estado. Ainda não satisfeita, a elite alagoana também vetou para o negro a possibilidade de o mesmo construir seu próprio negócio, na medida em que ele não poderia exercer a função de mestre de ofício, qualquer que seja, tais como marceneiro, alfaiate, carpinteiro".

Na visão do professor, o governo do Estado é diretamente responsável pelo atual estado de pobreza e exclusão da população negra. Unido a isso, tem a responsabilidade do setor privado, que são as históricas famílias que escravizaram milhares de negros em terras alagoanas.
  "Acredito que a reivindicação da identidade negra vem crescendo nos últimos anos. Isto deve ser visto enquanto consequência do trabalho desenvolvido pelas organizações do movimento negro. É certo que ainda estamos longe do que seria ideal no que tange a um nível de consciência de raça, mas creio que estamos no caminho certo. O Instituto do Negro de Alagoas, em particular, tem cobrado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas [Fapeal], em conjunto com o Ministério Público [MP], que o órgão constitua um programa de promoção do negro e do indígena, principalmente no que diz respeito à concessão de bolsas de estudo".

Jeferson Santos aponta como solução para o racismo a implantação de políticas públicas de promoção socioeconômica para a população negra. O Estado de Alagoas, bem como as tradicionais famílias senhoriais, devem indenizar financeiramente cada negro e negra. Ou ainda, de outra modo, os mesmos deveriam constituir um fundo de promoção para o negro, com tais recursos.

"Assim como todo negro nesse país, fui e sou também vítima de preconceito diariamente. Adjetivos como 'nêgo safado' e 'cabelo de tuim' sempre estiveram presentes na minha vida", lamenta o militante.

OAB Conforme explica o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Alagoas (OAB/AL), Daniel Nunes, houve um aumento significativo no número de casos de preconceito em Alagoas, sejam eles de qualquer aspecto. O motivo se deve ao conservadorismo de parte da população e à influência das redes sociais.

"Ainda existem pessoas totalmente conservadoras, de mentes fechadas. Não se pode agir assim, porque estamos lidando com humanos. Hoje a internet influencia tudo e todos e precisamos ter cuidado com o que postamos, com nossas opiniões, com nossa forma de pensar e ver o mundo ao redor", ressalta Daniel.

Segundo o presidente, Alagoas é o estado que mais encarcera negros no país. Quase 100% das abordagens policiais são voltadas a negros e jovens, e mais de 80% da população negra é vítima de morte violenta. Na mesma situação, estão os membros de Matriz Africana.

"O maior exemplo de desrespeito a uma crença foi a demolição de um templo na desocupação do Jaraguá. O Estado cometeu um crime contra a liberdade religiosa ao suprimir o espaço", pontua Nunes.

Na visão de Daniel, a população LGBT faz parte do universo discriminatório e, atualmente, Alagoas é o estado onde se tem o maior número de agressões. E os deficientes também entram no rol de denúncias que chegam à OAB. Todas são encaminhadas ao Ministério Público Estadual (MPE), Defensoria Pública e Corregedoria da Polícia Militar (PM).

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