Por Miguel Conceição
Quero começar esse texto ousando pedir aos meus caros poucos, porém muito inteligentes, leitores um gesto físico: fechar os olhos, viajar no tempo e se imaginar lá. Espera! Visualize a cena: em meados do século passado uma jovem negra, pobre, morando em uma humilde casa, calor infernal, passando fome e já mãe! Vendo o sofrimento e ouvindo o choro de seus filhos. O motivo? Fome! Muita fome! Agora feche os olhos e pare por um momento...
O que você sentiu? O que você faria?
Elza Sores se viu diante dessa situação enquanto passava no rádio a notícia de que o prêmio para quem cantasse bem estava acumulado. De pronto essa franzina menina pegou uma roupa de sua mãe, ajustou-a ao corpo com grampos, pegou uma sandália “mamãe tou na merda”, tipo de calçado assim alcunhado por ela, e seguiu para o evento que mudaria sua vida.
O concurso se passava num programa famoso na época, 1953, comandado por Ari Barroso. Ao avistarem aquela figura franzina, mal vestida e destoante em todos os sentidos daquele glamouroso mundo, todos riram dela.
“O que você veio fazer aqui?” Perguntou o apresentador.
“Eu vim cantar!”
“Mas de que planeta você veio?!”
“Eu vim do mesmo planeta que o seu, seu Ary.”
“E qual é o seu planeta?”
“Eu vim do planeta fome!”
Silêncio geral na plateia. Era o marco da chegada de temas sociais para um público elitizado pela figura guerreira de uma franzina preta. Ela começou a cantar a canção “Lama” e o gongo, sinal de que se tocasse a pessoa não teria alcançado o prêmio, não tocou. Ao que Ari Barroso proclamou: “Senhoras e senhores, nasce uma estrela!” E a estrela nasceu.
De lá para cá, entre tantas glórias e infortúnios, idas e vindas, perseguição pela Ditadura Militar, enfrentando a violência em relacionamentos, o preconceito, o racismo, o ostracismo midiático, essa grande mulher acumulou um capital político e de resistência em sua voz que poucos alcançarão. Nunca se calou, jamais se acovardou. Do alcance de sua voz fez um instrumento para atingir pontos sensíveis na vida social brasileira e desbravar fronteiras ainda pouco abertas a pessoas negras. Elza Soares chegou lá e não ficou sozinha, levou consigo a possibilidade de artistas negros se colocarem na qualidade de poderem ser ouvidos. Uma voz que deu vozes.
A menina que veio do planeta fome lutou contra a miséria com sua voz estrondosa e única. Seu legado imenso sedimentou o piso sobre o qual tem assento toda uma geração de pessoas que trazem na sua arte a marca de luta por igualdade e justiça social. Uma franzina menina, que se tornou uma grande mulher e saciou a fome e sede de ser e de existir de sua gente preta.
Sua partida é realmente uma grande perda num momento tão difícil que o Brasil enfrenta porque com sua voz ela era uma força política importante na busca por dias melhores, na luta contra o fascismo crescente, na luta contra todas as ideologias de opressão que castiga nossos dias atuais. Não cala-se a voz fisicamente apenas, mas com ela cala-se a possibilidade de uma postura política que ela sempre trouxe consigo.
Mas Elza Soares, mulher que foi proclamada a Voz do Milênio, tornou-se suprema e continuará viva com seu legado que se perpetuará para sempre. E em tempos tão conturbados politicamente, a mulher do fim do mundo se eleva às estrelas deixando uma lição de força e coragem para lutarmos pelo começo de um novo mundo.